outubro 27, 2005

storyteller

sempre de olho nas letras impressas num qualquer livro. sempre lendo histórias que a transportavam para um universo de fantasia, onde (quase) tudo é permitido. nada é demasiado estranho. tudo plausível, porque o mundo foi, é e será sempre muito mais estranho que a ficção. todos os dias pensava em escrever um livro. todos os dias desistia da ideia. que poderia escrever? já não há ideias originais, pelo menos na sua cabeça pareciam não haver. ficava maravilhada com a forma como todos conseguiam passar para o papel o sentimento perfeito, o beijo perfeito, o pôr-do-sol perfeito. mesmo quando a história tocava em temas como a morte e a violência, era sempre capaz de ver a frase perfeita. ali mesmo ao canto da página 149. mas ela era incapaz de se sentar num lugar isolado e simplesmente escrever. nada saía. como se lhe tivessem rolhado as sinapses que controlavam os dedos, estes permaneciam imóveis durante horas.

transcrevia algumas para um caderno de argolas que pedia incessantemente a reforma. preso com um elástico para que as folhas que entretanto foram adicionadas não se escaparem. guardanapos, post-its, pedaços de extractos bancários. tudo servia para guardar aquele momento e aquelas palavras. muitas vezes chegava a andar nos transportes públicos com as mãos e braços cobertos de gatafunhos com excertos de livros que ia lendo. as pessoas olhavam de soslaio para ela, com o ar típico de quem sabe que encontrou alguém que "visivelmente, não bate bem da bola". ela nem reparava nos olhares de espanto. simplesmente sorria, repetindo para si as frases que escrevia. repetia as frases até que estas estivessem gravadas no seu cérebro. até que deixassem de ter significado e passassem a ser pura e simplesmente uma representação daquilo que achava belo.

sempre lendo histórias. até ao dia em que finalmente encontrou uma ideia digna de um livro. um conto que pedia para ser contado. alguém teria que o fazer, eventualmente. porque não ela? afinal de contas, ela seria sempre a melhor pessoa para o fazer. a vida era dela.

escreveu freneticamente durante meses. lutando contra o esquecimento de momentos passados há décadas. tentando ser justa em relação aos sentimentos do passado. procurando ser imparcial, mesmo para aqueles que a magoaram.

escreveu inúmeros capítulos. alguns eram pequenos e relatavam quase 20 anos da sua vida. outros eram enormes e descreviam apenas uma tarde na companhia de alguém especial. nessa altura percebeu como o tempo é relativo. e proporcional a quem o preenche.

escreveu toda a sua história. relatou toda a sua vida. só não pôs uma palavra no livro. recusou-se terminantemente a fazê-lo. parecia-lhe uma sentença, o seu coração batia mais devagar de cada vez que pensava nisso.

assim ficou o livro. terminado, pronto para ser lido. e sem fim...

4 ex troardinary remarks:

Blogger Ana Elias wrote...

Inspirado!

27/10/05, 12:43  
Blogger paulo wrote...

a culpa é toda de ler belos textos pela manhã... ;)

27/10/05, 14:27  
Blogger Ana Elias wrote...

A culpa é dessa tua cabecinha, meu amigo... o resto saõ jogos florais!

[não sei lidar com elogios... tipo, fico corada e com vergonha, porque não parece, mas sofro da puta da timidez...]

27/10/05, 15:16  
Blogger paulo wrote...

nesse caso junto-me ao clube... eu também sofro com essa p*t*. com a agravante de que num país estrangeiro é ainda pior.

por isso é que ando sempre caladinho... só quem me conhece bem é que sabe que depois de passada aquela barreira, o difícil é calar-me.

jogos florais não sei, mas renda, croché e ponto de cruz, talvez.

27/10/05, 15:36  

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