storyteller
transcrevia algumas para um caderno de argolas que pedia incessantemente a reforma. preso com um elástico para que as folhas que entretanto foram adicionadas não se escaparem. guardanapos, post-its, pedaços de extractos bancários. tudo servia para guardar aquele momento e aquelas palavras. muitas vezes chegava a andar nos transportes públicos com as mãos e braços cobertos de gatafunhos com excertos de livros que ia lendo. as pessoas olhavam de soslaio para ela, com o ar típico de quem sabe que encontrou alguém que "visivelmente, não bate bem da bola". ela nem reparava nos olhares de espanto. simplesmente sorria, repetindo para si as frases que escrevia. repetia as frases até que estas estivessem gravadas no seu cérebro. até que deixassem de ter significado e passassem a ser pura e simplesmente uma representação daquilo que achava belo.
sempre lendo histórias. até ao dia em que finalmente encontrou uma ideia digna de um livro. um conto que pedia para ser contado. alguém teria que o fazer, eventualmente. porque não ela? afinal de contas, ela seria sempre a melhor pessoa para o fazer. a vida era dela.
escreveu freneticamente durante meses. lutando contra o esquecimento de momentos passados há décadas. tentando ser justa em relação aos sentimentos do passado. procurando ser imparcial, mesmo para aqueles que a magoaram.
escreveu inúmeros capítulos. alguns eram pequenos e relatavam quase 20 anos da sua vida. outros eram enormes e descreviam apenas uma tarde na companhia de alguém especial. nessa altura percebeu como o tempo é relativo. e proporcional a quem o preenche.
escreveu toda a sua história. relatou toda a sua vida. só não pôs uma palavra no livro. recusou-se terminantemente a fazê-lo. parecia-lhe uma sentença, o seu coração batia mais devagar de cada vez que pensava nisso.
assim ficou o livro. terminado, pronto para ser lido. e sem fim...