hoje vou inventar-te uma vida. criar-te a partir da costela de sonho. à imagem e semelhança daquilo que apenas vive no imaginário nocturno. hoje vou dar-te um passado, uma personalidade, um emprego, desejos, medos. tornar-te humana. nem que seja apenas nos meus pensamentos.
hoje vou dar-te um nome, uma família e um local de nascimento. desenhar-te um percurso escolar e progressão curricular, criar uma história médica, sem complicações de maior que não as duma infância feliz. hoje povoo a tua face com os olhos mais brilhantes que consigo imaginar, sarapinto com sardas as tuas maçãs do rosto
(maçãs do rosto e não malares ou zigomáticos pois esses não transmitem a doçura que transportam) e humedeço os teus lábios.
hoje escrevo a nossa história. guardada nos compêndios do passado, repetida vezes e vezes sem conta, com outros nomes que não os nossos. tristão e isolda. romeu e julieta. mas sem a tragédia associada aos tempos passados. o sofrimento que contém provém do passado solitário e não do futuro em comum. porque o amor não é isso.
hoje dou-te uma vida. invento uma situação e local banais que servem de pano de fundo para o nosso encontro casual. para a troca de olhares que inevitavelmente acontece. tratando-se duma obra de ficção, não existem pausas, hesitações ou timidez. depressa há sorrisos, depressa há uma ligação que vai para além das palavras que atravessam o espaço que separa os nossos corpos. tratando-se duma obra de ficção, a cronologia pouco interessa. o tempo demora muito pouco a passar. não consegue sequer acompanhar o passo dos sentimentos que voam e arrancam os corpos da sua natural inércia.
hoje vou inventar-te uma vida. vou dar-te o que sou e receber o que és. vou desenhar uma história em comum, do princípio ao fim. do primeiro ao último beijo, passando pelo momento em que nos tocámos pela primeira vez. em que sentimos a pele a retroceder, receosa. mas nem ela foi capaz de conter o desejo e cedo se dispersou por dois corpos.
hoje crio-te a partir do nada. hoje dou-me um propósito para viver.