maio 22, 2006

retrato

a face escanhoada era o completo oposto do mar revolto que lhe povoava o peito. a vida calma há muito que o tinha abandonado. nada mais fazia sentido. nem nos próprios sentidos podia confiar. tudo o que via lhe parecia pálido em comparação. vivia num estado de permanente agitação. os dias pareciam estender-se até ao infinito e não se lembrava da última vez que tinha tido descanso. os olhos raiados de sangue eram incapazes de mentir. as insónias repetiam-se. noite após noite. nas raras ocasiões em que eventualmente dormia, os seus sonhos eram povoados por aquilo que preenchia os seus dias. a mesma imagem, repetida até à exaustão (física e mental), como se só isso existisse no mundo.

e, para ele, essa era a verdade. só ela existia. a cada momento. em cada passo e em cada pulsação. a pele que ansiava tocar. os lábios cujo sabor imaginava noite após noite. o corpo que o perseguia e no qual desejava estar. nada mais existia para ele. cada dia afastado dela traduzia-se em dor. uma dor silenciosa que chegava a ser física, sentida na pele, como se o antídoto estivesse a correr no interior das veias alheias.

cada dia era mais um passo em direcção à loucura. mais um dia sob o efeito de hormonas hiperactivas. o desejo era insuportável. sentia-se a arder e a única forma de extinguir esse fogo era-lhe negada pelos caprichos do destino.
na sua mente, eram amantes eternos que todas as noites se entregavam um ao outro na esperança de, um dia, se completarem. na esperança de sentir a metade que falta. na ânsia de consumar o amor que os unia independentemente da distância.

um só pensamento lhe preenchia a mente. a certeza de que cada segundo os colocava cada vez mais próximos...