agosto 03, 2005

dance me to the end of the world

os carris parecem longos demais, a distância demasiado grande para ser percorrida rapidamente. a estação de onde partiu está já a anos-luz do lugar onde se encontra agora. não a reconheceria se voltasse atrás. não conseguiria distinguir aqueles minúsculos pormenores que fizeram com que lá tivesse ficado tanto tempo. o relógio analógico de aspecto centenário projectando sempre a hora correcta. as plataformas de chão polido por milhares de pés ziguezagueando por entre multidões de corpos tensos. corpos de colarinho alvo, focados nos seus problemas e ansiedades. os carris enferrujados, vergados pelo peso de carruagens obesas e cansadas. as bilheteiras com seus vidros repletos de polegares alheios, apressados, irados e incompreendidos
tudo isso ficou para trás. não passam de momentos que pertencem ao passado e que não serão revividos...
desconhece o tempo total da viagem. o destino é irrelevante.
para longe. o mais longe possível...
as memórias são serenamente substituídas pela paisagem monocromática que se repete de ambos os lados da linha. como se fosse possível esvaziar o que leva dentro da caixa craniana. de forma indolor, quase dá conta do vácuo que suga a sua mente. incapaz de o contrariar, sorri ao avistar as primeiras nuances de côr no monte que vislumbra a custo no horizonte.
uma irreprimível vontade de puxar a alavanca vermelha do alarme apodera-se de si. parar a todo o custo o rumo que percorre para poder alcançar aquele lugar distinto dos demais. lugar que lhe começa a ser familiar. conhece-lhe a forma, desconhece-lhe o interior.

escuridão


entrecortada por finos raios luminosos que reflectem nas janelas duplas não estilhaçantes.
um túnel...
se alguma vez voltar, talvez possa parar acolá para o explorar devidamente.
lembra-te da promessa que fizeste. nunca voltar. agora, nada lá interessa...
o cenário volta a preencher o exterior da carruagem em que se encontra. mas, agora, rios de côr banham tudo o que vê. o mundo parece ter-se transformado numa espécie de líquido viscoso que actua como prisma para o universo. mas nada lhe parece peculiar. não depois de ter visto o destino. não depois de ter confirmado a hora de chegada. imagina-se mergulhando nas árvores de folhas caídas que toda a vida acompanharam os seus longos passeios à beira da estrada. só para sentir a aspereza dos seus troncos. para provar a seiva que lhes corre nos vasos celulósicos. sempre quis fazer isso. antes que seja tarde, imagina-se a golpear aquela que se aninha no solo mais ressequido. ardendo de desejo, sorve o máximo que a sua boca sequiosa consegue alojar. delicia-se com o sabor agridoce, típico do ser ferido e em choque. agora sim, a viagem pode prosseguir...
a espera foi longa. o momento breve. a sensação ténue, desalmada. mas o corpo jaz revigorado...
o sangue ferve-lhe nas veias, enquanto tenta manter um semblante calmo.
ainda bem que não vês para além destes olhos, que não lês minha mente
um olhar de relance para o bilhete caído a seus pés. a hora dactilografada a vermelho. o destino que se esbate.
mais tarde ou mais cedo, irá parar...

3 ex troardinary remarks:

Anonymous Anónimo wrote...

As viagens sempre foram um bom tema literário.

Gostei desta tua viagem, especialmente de como intercalas detalhes exactos com considerações subjectivas.

"um olhar de relance para o bilhete caído a seus pés. a hora dactilografada a vermelho. o destino que se esbate." Estas palavras fazem-me imaginar a cena como se fosse um filme.

03/08/05, 11:04  
Anonymous Anónimo wrote...

Uma escrita precisa, concisa...um texto concebido de uma forma excelente. Gostei!! Beijinhos :)

03/08/05, 11:09  
Blogger Zorze Zorzinelis wrote...

Muito interessante, amigo. És senhor de uma enorme sensibilidade.

03/08/05, 14:04  

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